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terça-feira, 27 de agosto de 2013

O ENTERRO - Por Coelho Neto


O ENTERRO 
 Por Coelho Neto 
               Outubro. O sol, em pleno meio-dia, alargava por todo o campo uma luz fixa e cáustica. Não havia sombra, tudo resplandecia de claridade e um tédio pesado e morno de preguiça parecia ter-se apoderado das próprias coisas, prendendo-as numa imobilidade morta, de onde nem mesmo o bulir das folhas tirava o doce murmúrio, tão agradável ao ouvido de quem trabalha sob rude prancha de uma soalheira viva. 
                Nas escarpas, esterilmente nuas, cabras, berravam com melancolia, e, de momento em momento, um boi magro surgia entre as palhas secas dos milhos, lento, estafado e mole, esticava o pescoço esfolado pela canga e mugia, ficando depois com o focinho à altura das praganas louras, contemplativo e tristonho, a olhar o céu de um azul liso e forte. 
                Por baixo, num largo planalto de terra vermelha, limpa de fresco, recentemente gredada, uma charrua arrastava-se ao passo tardo de dois touros. 
                Do céu quente, sob a radiação nevrótica do sol, caía uma paz cansada, e na vasta planície nua, toda de restolho, ceifada de extremo a extremo, erguia-se apenas um casebre tosco, metido dentro de um cercado, à sombra quieta de um mangueiral ramalhoso.  
                 A par da estrada, de um amarelo sujo e peco, orlada de espinhais mirrados, corria, murmuroso e pesado, o rio sonolento, onde a figura solitária de uma lavadeira brandia panos, metida n'água até aos joelhos.  No alto de um monte, fechado de mato intenso, ardia tremulamente, fumarando espirais de cor turquesa nova, um fogo de estio, aceso espontaneamente, como outrora arderam no cume do Sinai as sarças de onde surgiu Jeová ditando a Moisés as leis do Decálogo.  
                 Para além andava-se em recua, gente miúda, pequena como as ervas rentes, diminuída consideravelmente pela distância, mourejava; ouvia-se o relincho prolongado de um carro primitivo, que vinha sulcando a terra com rodas compactas, atulhado de lenha.
                  De repente uma voz fina partiu a cantar gemedoramente e, antes de morrer de todo, um coro tomou do eco e entoou o mesmo canto, num ritornelo grave. Dois homens, a cavalo, surgiram detrás da barranca; em seguida as madrinhas, duas vacas mansas, tinindo cincerros; a boiada depois, submissa e vagarosa, turbilhonando o pó vermelho da estrada, e por fim um magote de campeiros, pampilho em punho, cantando numa toada indolente o coro pastoral. 
                  A tropa ganhou o campo. Reboaram gritos de: - EH! Ahuu! EH! lou! cá, cá, cá, ehou!
                  E o gado  solto, tresmalhou na pastagem, começando, à luz intensa e abafada, o rouco mugir dos touros, um após outro, dois a um tempo, e o galope dos bezerros, enquanto os guieiros, pulando abaixo dos lombilhos, desciam na direção do rio, juntos, ficando um só de guarda. 
                  O céu, para os lados do oriente, ia tomando uma cor baça de mercúrio e começava a arejar o escampo uma brisa fraca, trescalando a queima. 
                  Aves piavam e no alto giravam malabarescamente urubus de atalaia. De vez em quando, no cercado do casebre, um galo soava a voz estrídula, e outros, daqui e de lá, numa sucessão pausada, cocoricavam em resposta. 
                  Rolavam, de longe em longe, como num aviso de tormenta próxima, surdos rumores de trovões; mas a luz, cada vez mais incendida, cada vez mais escaldante e mais clara, parecia desmentir o anúncio da tempestade. Revoadas de pombos cruzavam com um tatalar sonoro, seguindo o rumo do vento, numa batida rápida, e, no quintalejo do casebre, um vulto de mulher, alta e fina, estacou entre os capins baixos, levou a mão espalmada à altura dos olhos, fitou a luz, e lentamente começou a recolher a roupa que corava no verde estendal de grama, enquanto um menino ia e vinha, a correr, carregando à cabeça paveias de capim novo, e as aves domésticas, cacarejando, acoutavam-se debaixo da ramaria frondosa das mangueiras. O vento começava a zurzir as folhas e escurecia com a rapidez com que descem os crepúsculos no inverno. 
                  Um frêmito de claridade percorreu todo o céu argamassado de nuvens e o rumor trovejante roncou mais forte, mais próximo, mais demorado; o ar pesava sufocante e, de vez em vez, circulava um redemoinho de poeira, em funil, dentro do qual ricocheteavam folhas. 
                   O dobre de um sino encheu momentaneamente o silêncio com a vibração ondulante de um misticismo meigo; outro dobre ressoou mais brando, como se partisse de mais longe, e logo após um, forte e claro, conforme as voltas bruscas do vento que soprava grosso. 
                  Dobrava afinados. Era o saimento da Teçaí, velha cabocla septuagenária, descendente dos fortíssimos Goytacazes, nascida e criada nesse lugar, primeiramente chamada de Taba de Itamina, pelo constante forgacho que ardia no monte, que diziam ser a alma pagã de Tagiíra, morta ao trocar o primeiro beijo, fulminada por Tupan justamente quando ia entregar a sua virgindade à volúpia brutal de um aventureiro branco. 
                  A gente simples de Itamina respeitava e temia a velha Teçaí, uns pelas suas pragas e malefícios, outros pelo terror da lenda que se criara em torno do seu nome. 
                  "Teçaí, a mãe das lágrimas, diziam em trovas os bardos das serranias, era filha da Yara Poranghi, fecundada por um raio de lua nova em Agosto. Nascera em uma Sexta-feira, à noite, à hora do primeiro cantar do galo. Na sua mocidade seus olhos tinham o poder de envenenar os homens e eram tão fortes seus olhos que, se por acaso se levantavam para o céu, as estrelas de Deus caíam moribundas." 
                   Era por isso que Itamina, à noite, quando no céu passava uma estrela cadente, os rústicos, perseguindo-se, diziam: 
                   - Mais uma vítima dos olhos maus de Teçaí! 
                   Os que conheceram a moça falavam com assombro da sua grande beleza, mas ninguém se bagou jamais de a ter possuído. 
Sobre os seus cabelos corria uma tradição ingênua e poética. Dizia uma canção: 
                   " Nos cheirosos cabelos de Taçaí, longos, negros e sedosos, nascem rosas e cravos, lírios e bogaris. "
                   " A cabeça de Teçaí é como um jardim cuidado - as flores das suas tranças dormem em botões fechados e, pela manhãzinha, justamente como as do campo, acordam desabrochadas." 
                    A poesia popular inspirara-se na estranha paixão índia pelas flores; porque ela andava sempre toucada de ramilhetes acreditavam que eles nasciam nos seus cabelos cheirosos.  
                    Á noite, os que viajavam, passando junto ao rio, achavam-na a bailar, falando á lua e às águas numa linguagem singular. Durante o dia cultivava a sua horta, junto à igreja.
                    Sucumbira de velhice, diziam, e lá ia o seu enterro triste, acompanhado por um borrego malhado, seu único amigo, e os que a levavam; ninguém mais.  O sino, entretanto, gemia pela pagã, a igreja abençoava a bárbara,   mas o céu, a mais e mais fechado, parecia trancar-se para não receber a alma infiel da índia feiticeira, cujo corpo encarquilhado ia a caminho da cova, ao tinir da sineta e ao triste balar do borrego, encerrado em uma arca, que nem um caixão lhe deram os piedosos cristãos de Itamina. 
                    Súbito, um clarão instantâneo iluminou o campo; durante uma pausa, o sino vibrou choroso, mas um formidável estrondo atroou os ares, abalando a terra; outro, logo em seguida, com um estalar de raio. Os bois assustados deitaram a correr aos galões, através da planície. Num ápice todos os campeiros montaram e a um grito partiram rebolando o sedenho, cravando de rijo as chilenas, atrás do gado que sumia perseguido pelos roncos da tormenta, na direção de um vale seco, cavado entre rochas. Mas a chuva varreu o campo, grossa, rabanando, açoitada por um vento desabrido que se levantara.  Sucediam-se os relâmpagos e os trovões ribombavam; longe, os gritos dos campeiros que afrontavam a tempestade brandindo os compridos ferrões, e além, o borrego da defunta, parado, indeciso, balando sob o aguaceiro, a olhar comovedoramente os homens que corriam sacolejando a morta dentro da velha arca. 
                   Sereno, tranquilo, continuando a bater à porta do céu com a sua prece, o sino, entretanto, insistia no seu ofício de religioso, triste, no púlpito do campanário, rezando pela morta o seu piedoso Réquiem monossilábico de sons. 
BREVE BIOGRAFIA 
Henrique Coelho Neto, escritor r romancista brasileiro, nasceu em Caxias, Maranhão, em 1864. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras.  A sua obra, muito extensa, compreende mais de sessenta trabalhos, entre romances, novelas, contos e obras de teatro. Foi professor no Ginásio do Rio de Janeiro. Escreveu: Rapsódias, contos; A Capital Federal, romance; Praga, novela; Baladilhas, contos; Inverno em flor, romance; O Morto; romance; A descoberta da índia., narrativa histórica. Por muito tempo foi o escritor mais lido do Brasil. Por esta obra, você podem ter uma ideia de sua grandiosidade literária. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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